Luís da Câmara Cascudo, construtor de monumentos
culturais imorredouros, nasceu no dia 30 de dezembro – dedicado a São Sabino –
de 1898, numa sexta-feira, às dezessete horas e trinta minutos – momento do Ângelus
– na Rua Senador José Bonifácio, número 212, conhecida Rua das Virgens, no
bairro da Ribeira, Cidade do Natal. Um canguleiro, pela divisão existente.
Seus pais, Francisco Justino de Oliveira Cascudo
(27/11/1863 – 19/05/1935) e Ana Maria da Câmara Pimenta ou Donana (17/02/1871 –
09/03/1962) eram parentes próximos, ambos de Campo Grande, Rio Grande do Norte.
Ele, militar de coragem comprovada, líder, habilidoso conversador, caridoso,
honesto e respeitado comerciante no final da existência. Ela, religiosa,
bondosa, dedicada dona de casa.
Luís tinha sido um sobrevivente das moléstias que
acometeram seus irmãos. Maria Octávia e Antonio Haroldo faleceram em Caicó,
onde o genitor era Delegado Militar. Já em Natal, Maria Severina, que trazia os
olhos azuis paternos, morreu em 1903, com um ano e três meses. Todos sucumbiram
da mesma enfermidade, crupe ou difteria.
A parteira foi Bernardina Nery, falecida no
Bairro das Rocas, onde morava, em 25 de agosto de 1922, com oitenta e dois
anos. Trouxera ao mundo mais de oitocentas crianças. Ouvindo o choro alto do
nascituro, o pai, Tenente do Batalhão de Segurança, perguntou aflito:
- Homem ou Mulher?
Respondeu “Mãe” Bernardina:
- Ele veste calças.
Cascudo sempre respeitou sua masculinidade.
Apesar da ausência de preconceitos que o caracterizava jamais se fantasiou de
menina nem mesmo usou saiote kilt em festa escocesa.
O nome escolhido foi promessa materna, que
desejava Luís de França. O pai vetou o “de França”, mantendo a ortografia. Luís
permaneceu com a letra “esse”.
Batizou-o Santo Padre João Maria, na Capela do
Bom Jesus das Dores, na Ribeira, hoje Matriz, no dia 9 de maio de 1899. Seus
Padrinhos foram o Desembargador Joaquim Ferreira Chaves, Governador do Estado,
e sua esposa D. Alexandrina Barreto Ferreira Chaves, amigos da família.
O Padrinho estudara latim e respondeu naquele
idioma as perguntas do sacerdote. O Padre João Maria, hoje canonizado pela
sabedoria popular, com busto em bronze perpetuamente cercado de velas e ex-votos,
abençoou-o com nome em latim: Ludovicus. Ao término da cerimônia
religiosa, a madrinha entregou o batizando à sua mãe, que ficara na residência,
como era o costume, dizendo as palavras tradicionais:
- Comadre, aqui está seu filho, que levei pagão e
trago cristão!...
Até sua morte, Luís procurou manter a fé e
merecer sua cristandade.
Cascudo não denominava realmente a família
paterna, constituída dos Justino de Oliveira, Gondim, Ferreira de Melo, e
Marques Leal. Antonio Justino de Oliveira (1829-1891), pai de Francisco, filho
de Antonio Marques Leal (1801-1891), vindo do português do mesmo apelido, era
chamado de “o velho Cascudo”, pela devoção ao partido Conservador,
possuidor de tal alcunha. Somente Francisco Justino e o irmão Manuel (1864-
1909) juntaram Cascudo ao nome. Manuel faleceu em São Paulo, major da
Polícia Militar, Comandante da Guarda Cívica, casado com a alemã Carlota Ester,
sem descendência. Luis da Câmara Cascudo foi assim registrado para perpetuar a
tradição nascida com o pai e o tio Manuel. Nos primeiros anos do Século XX
unicamente Luís e o primo Simplício, filho da tia Maria Severa e de criação de
Francisco Justino, eram Cascudo. Depois o nome foi adotado por alguns
primos, tornando-se “popular” no Estado.
Cascudo não é o besouro, o coleóptero, nem muito
menos o gestual de castigo. É um peixe de loca, acari, Precostomus
loricariae. Cascudo é peixe, padrinho do rio Carioca, vindo do Acari-Oca,
paradeiro dos Acaris. Luís da Câmara Cascudo, estudioso da heráldica, incluiu o
peixe no seu ex-libris, acrescido da máxima latina: Dum Spiro Spero, que
significa: enquanto respiro, espero. Dizia Jorge Amado que era a
afirmação da esperança. Hoje o ex-libris acrescido do nome Ludovicus, é
registrado pelo Instituto Câmara Cascudo, perpetuador do seu nome, obra,
essência.
O primeiro banho do menino Luis foi com água
morna, bem temperada com vinho do Porto. A “simpatia” era para ficar forte. Foi
acrescentado um patacão de prata, do Império. Promessa de nunca faltar
dinheiro. Conclui-se hoje que foram bem intencionados, mas sem garantias reais
e palpáveis de concretização.
Menino magro, enfermiço, pálido, cercado de
dietas e restrições clínicas, assim se auto-descrevia meu pai. Mas os amigos
mais próximos, Jaime Wanderley e “Babuá”, rejeitavam esses adjetivos. Afirmavam
que os professores, especialmente Francisco Ivo Cavalcanti recordava criança
vivaz, alegre, inteligente, buliçosa, inquieta. Mesmo proibido de correr,
pular, pisar descalça na areia, subir em árvores, tudo pelo receio dos pais de
ter Luis a destinação dos irmãos, aproveitava as oportunidades para desafiar a
sorte. Obediente na aparência. Brincava no quarto cheio de brinquedos.
Obrigavam-lhe o sedentarismo. Mas fugia, dando asas à sua imaginação sem
limites, tomando banho frio, brincando na rua, pescando no rio Potengi.
Aprendeu a ler sozinho aos seis anos, graças à
revista Tico-Tico. Sua primeira professora foi Totônia Cerqueira, que
lhe amarrou no braço uma fita azul, jurando seu aluno ter aprendido tudo que
ensinara. Estudou no Externato Sagrado Coração de Jesus, no Colégio Diocesano
Santo Antonio. Morando no Tirol, os pais resolveram pelo ensino a domicilio.
Professores magistrais, depois tornados amigos diletos: Pedro Alexandrino,
Francisco Ivo Cavalcanti, Ivo Filho. Lia muito, tudo que encontrava. Revistas,
álbuns, gravuras, almanaques, novidades, estórias. A curiosidade ilimitada que
possuía abria seus tentáculos para o mundo que o cercava. Em 1914 passou a
freqüentar cursos, preparando-se para os exames no Atheneu Norte-Rio-Grandense.
Lá, estudou Humanidades, e se “enturmou”. Queixava-se do isolamento infantil.
Da ausência dos “melhores amigos”. De brincar sozinho, com soldadinhos vindos
da Alemanha, estação com trens ingleses, casa de madeira, armada sobre rodas no
quintal da residência na Campina da Ribeira. Jaime Adour da Câmara (1898-1964)
era um dos íntimos. A casa, depois “Vila Cascudo”, vivia repleta de amigos e
era o supra-sumo da Democracia posta em prática: hospedou com o mesmo carinho a
Família Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo.
Sobre a “Vila Cascudo”, façamos algumas
considerações importantes. Em fins de 1913, Francisco Cascudo, empresário,
adquiriu ao arquiteto Herculano Ramos, por vinte mil réis, a “Vila Amélia”, no
Ti rol, “região de chácaras e quintais”. A propriedade abrangia três quartas
partes do quarteirão entre as avenidas Campos Sales e Rodrigues Alves, Rua
Apodi ao fundo e à frente a Jundiaí, número 93. Paralelamente, a Avenida
Rodrigues Alves, era quase toda de Cascudo, lembra Jaime Câmara (Revista
Província 2, 1998). No ângulo com a Rua Apodi, presenteou ao Monsenhor José
Alves Ferreira Landim, o terreno para a construção da Capela de Santa Terezinha
do Menino Jesus, hoje Matriz, “onde nenhuma inscrição rememora a generosa
dádiva” (Luis da C. Cascudo, O Tempo e Eu). O Coronel Cascudo murou-a
de balaustres e instalou-se com a mobília adquirida do Senador Pedro Velho,
jacarandá entalhado de dragões, descanso em rosáceas confeccionadas de veludo
francês. Pérgula, do terraço ao portão na Rua Jundiaí. A sala de visitas era
pintada a óleo com grinaldas e florões, pelo artista espanhol Rafael Foster que
aqui residia. Mosaicos belgas em toda a extensão residencial, vindos do antigo
proprietário. Tetos forrados em fundo de masseira. Lustres de cristal tcheco.
No saguão, iluminado pelas janelas de rechias, abria-se a primitiva biblioteca
de Herculano, depois com literatura selecionada por Henrique Castriciano e
Pedro Alexandrino. No meio dos livros, Luís se sentia no Paraíso...
Árvores de frutos raros, que eram podadas por
jardineiro italiano; cajueiros, mangueiras, jambeiros. Frondosos e plenos de
frutas deliciosas. Caramanchões com jasmins do cabo, resedás e bogarís, de odor
penetrante. Donana Cascudo conservava um jardim lindíssimo, que contornava a
casa. Possuía enorme variedade de rosas, de cores diversas, e mais de duzentas
dálias, de tamanhos e tons diferenciados. Profetizava o nome de quem seria sua
nora, Dáhlia. Na Vila, seriam recebidas as maiores personalidades nacionais.
Perto do largo portão da Rodrigues Alves, o estábulo das vacas holandesas, e a
estribaria do Cavalo Cossaco.
Luís da Câmara Cascudo foi para a Vila ou
Principado do Tirol adolescente, com quinze anos incompletos. Saiu de lá aos
34, bacharel, professor, pobre, casado e com um filho, sustentando mãe, pai,
esposa e primogênito. F. Cascudo hipotecara todo aquele mundo por trinta réis,
e não conseguiu saldar a dívida, executada. Não pediu nem solicitou auxilio de
ninguém. Donana lhe entregou todas suas valiosas jóias, que depois assistia,
sendo usadas pelas mulheres dos “amigos...”. Todos os empréstimos, feitos sem
recibos pela credulidade do Cel. Cascudo não foram resgatados. A conhecida
promessa da honra motivada por um fio de cabelo do bigode do devedor não
funcionou... A falência do pai provocou uma imensa reviravolta na vida do
filho, segundo suas próprias palavras: “A pobreza de meu pai, altiva e
nobre, não me permitia abandoná-lo e viajar para o sul, vencer no Rio. Filho
único devia retribuir em assistência quanto tivera em pecúnia e carinho.
Fiquei, definitivamente e sem recalques, provinciano. Ia ser até a velhice,
professor jagunço. Sem perder o aprumo senhorial, o olhar azul irresistível, as
maneiras gentis e afáveis. Continuou uma das figuras mais prestigiosas e
queridas da cidade.” (“O Tempo e Eu”, Luís da Câmara Cascudo).
Sua verdadeira vocação era ser cientista. Foi
cursar medicina na Bahia em 1918. Fez até o quarto ano. Sonhava possuir
laboratório e desenvolver pesquisas. Naquele tempo não havia a especialidade.
Era indispensável ter uma esmeralda no dedo. Mas com meu avô, Francisco Justino
de Oliveira Cascudo já empobrecido, o filho não poderia ser mais um pesquisador
na terapêutica tradicional, como desejava. Os móveis, os utensílios, tudo
demandava muito dinheiro. Sem uma queixa, abandonou o curso no último ano e
fixou-se na Cidade do Natal. Começou a ensinar nos Colégios e Cursos
particulares.
Foi para a Faculdade de Direito do Recife,
levando as economias pessoais, hospedado em pensões humildes e típicas. Em
dezembro de 1928 formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais. A pobreza do seu
pai, altiva e nobre, não lhe permitia abandoná-lo e viajar para o sul, mesmo
recebendo convites tentadores. Já era noivo. Filho único devia retribuir em
assistência quanto tivera em pecúnia e carinho. Ficou, definitivamente e sem
recalques, provinciano. Ia ser até a velhice, professor jagunço.
Professor do Atheneu Norte-Rio-Grandense em 1928,
Américo de Oliveira Costa relembra as aulas que fascinavam alunos, com a classe
repleta de intelectuais que vinham assisti-las, incrédulos pela verve e
erudição demonstradas, contrastando com sua jovialidade. É válido registrar que
até pouco tempo atrás, era conhecido como jornalista brilhante e filho de
milionário. Agora era sustentáculo familiar. Ensinava História Geral e do
Brasil em diversos cursos e ainda dava aulas particulares. Permanecia lendo e
escrevendo sem descanso. Sem dúvida, um trabalhador. Foi ainda Professor da
Escola Normal, dos Colégios D. Pedro II e Marista, e Nossa Senhora das Neves. Um
guerreiro. Em 1950, o Governador José Augusto Varela nomeou-o Diretor do Museu
e Arquivo. Antes fora advogado de funcionários da Great Western e Secretário do
Tribunal de Justiça, com a penitência diária de lavrar atas. Junto com Valdemar
de Almeida, fundou um Instituto de Ensino Musical. Dizia-se apaixonado pela
Música, popular ou clássica. Lia as pautas com rapidez impressionante. Foi esta
a base para a criação da Escola de Música.
Silvio Piza Pedrosa, grande amigo, companheiro na
deslumbrante tarefa diária de buscar os mais belos crepúsculos da cidade,
lembrou do seu nome para a recém fundada Faculdade de Direito do Natal em 1951.
Mas antes ensinava Etnografia na Faculdade de Filosofia e Ética na Faculdade de
Serviço Social. Foi, com Onofre Lopes e uma plêiade de abnegados, capitaneados
pelo Governador Dinarte de Medeiros Mariz, um dos responsáveis pelo ingresso no
nível de Universidade que seria Federal. Seu discurso na Cerimônia de Abertura
da Universidade, em 1959, até hoje é citado pela perfeição textual. Em algumas
Faculdades de Filosofia ou Jornalismo do Sul, exemplo de técnica, traduzido
para vários idiomas.
Professor de Direito Internacional Público, na
Faculdade de Direito de Natal, como atesta Américo de Oliveira Costa, “revolucionou
a maneira de ensinar”. Seus alunos aprendiam o Direito autêntico, aquele
que engloba todas as matérias do conhecimento. Era o Direito Filosófico,
eterno. Mas também atual prático. Seus exemplos reuniam o cotidiano
internacional. Discutia e explicava noticias diárias e ocorrências. Mas também
se valia das raízes greco-romanas. Berilo Wanderley, saindo da classe, me
confidenciou: “Estou emocionado, colega. Seu pai se serviu da aritmética
elementar para nos fazer entender as leis que regem o direito aéreo e o
marítimo. Caíram as fronteiras da nossa ignorância.” Sua vasta cultura
conseguia emoldurar a legislação mundial e reuni-la na algibeira da nossa
limitação. Foi o mais completo, o mais delicioso e imperdível Professor de
Direito. Diógenes da Cunha Lima relata: “quem foi seu aluno sofre de uma
eterna orfandade, uma lacuna jamais preenchida.”
Nomeado Terceiro Consultor Geral do Estado, em
1959, pelo Governador Dinarte, recebeu salário digno, justiça que veio tarde,
mas válida.
Filho único de Chefe Político, com o dom da palavra
e carisma de líder, o mundo não aceitava seu desinteresse eleitoral. Amigo de
Dinarte e Aluisio Alves, em entrevista, declarou que era impossível para ele
dividir conterrâneos em cores ou gestos de dedos, quando a terra é uma unidade
com a sua gente. “Meu país vive e pensa no nosso corpo”, repetia.
Nacionalmente, foi muito convidado à Senadoria. “O difícil é escolher o
estado. Sou principalmente brasileiro. Amo todo o seu território”, finalizava.
Professor foi a sua destinação. Ainda na UFRN
dirigiu o Instituto de Antropologia, hoje Museu Câmara Cascudo. Aposentou-se em
1966. Em 1967 recebeu o Título de “Professor Emérito” e, em 1977, o de Doutor
Honoris Causa.
Presença ativa em todas as frentes da atividade
local, nacional e internacional. Ergueu a escada ascendente de sua obra
pioneira e única, adquirindo conhecimentos graças a esforço isolado, pesquisa
paciente e labor continuo que o tornaram sábio. Solitariamente, sem recursos
pecuniários e em rincão nordestino, produziu um conjunto de obras de pesquisa,
análise e interpretação da realidade brasileira em todos os ângulos, de elevado
grau de criatividade e densidade cultural.
Estudiosos da sua biografia, documentando-a
analiticamente, ressaltam que esse fenômeno das nossas letras provou que é
possível escrever livros que revelam ampla erudição e pontos de vista
absolutamente pessoais, numa cidade sem bibliotecas, vivendo sem nenhum
privilegio de fortuna e de poder, trabalhando duramente para manter a família.
Segundo Carlos Drummond de Andrade, “ele diz, tintim por tintim a alma do
Brasil em suas heranças mágicas, suas manifestações rituais, seu comportamento
em face do mistério e da realidade comezinha. Não é apenas o Homem-Dicionário
que sabe tudo, é muito mais, e sua vasta bibliografia de estudos folclóricos e
históricos marca uma bela existência de trabalho inserido na preocupação de
“viver” o Brasil.”
Na sua obra, pois, há o historiador, o etnógrafo,
o folclorista, o antropologista, o sociólogo, o ensaísta, o jornalista, o
tradutor de diversos idiomas, o comentador, memorialista, o cronista. Até
romancista de costumes animais, com nitidez cientifica.
As “Actas Diurnas”, artigos escritos de 1939 a
1960 nos dois jornais locais, iniciaram a crônica histórica, estilo diferente
de fixador, pintor de tipos humanos. Inventou conceito brasileiro para a
literatura oral. Deu foros de ciência ao folclore, que difundiu e valorizou.
Inovou fornecendo caráter enciclopédico à sua pesquisa. Sua atualização e modernidade
são surpreendentes. O texto enxuto, claro, parece saído de um manual de
redação. Descobertas e afirmações postas em dúvida anteriormente, pela ausência
de técnicas, são reconhecidas como verdades, nos dias de hoje.
Até marqueteiro se revelou. Sua frase, “O
melhor do Brasil é o Brasileiro”, deu origem à campanha de autoestima,
detentora de diversos prêmios populares e da área. Dizia o IBOPE que nove entre
dez brasileiros se identifica com a sentença. Foi, em termos comparativos,
maior e por mais tempo no ar na televisão, dando seqüência à valorização de
símbolos e cores pátrios, qual sirene chamativa de significados adormecidos.
No dia 30 de julho de 1986 ele deixou a terra, viajando para outra
galáxia. Mas de maneira inédita, permanece entre nós.
Criou a Universidade Popular, com aulas públicas
por dois anos. Fundador e idealizador, com grupo de escritores potiguares, da
Academia Norte Rio Grandense de Letras em 1936; fundador, com o gaúcho Dante
Laytano, da Academia Brasileira de Arte, Cultura e História, ativa em São
Paulo; Homem do Século, em votação popular ocorrida em 2007, promovida pela
Rede Globo de Televisão, no Rio Grande do Norte. Nove vezes inspirou e
protagonizou Coleção de Selos dos Correios e Telégrafos; foi cédula de
cinqüenta mil cruzeiros; cartões de telefone; bilhete da Loteria Federal,
esgotado em uma semana. Sonhou e concretizou a Sociedade Brasileira de
Folclore, em 1941, quando a cultura popular era ignorada e até estigmatizada
pelos estudiosos brasileiros.
Destacado como pensador sul-americano em
religiosidade, teve painel gigante comemorativo na EXPO 98, em Lisboa,
Portugal, sob a égide de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil. A Europa
comentou favoravelmente sua frase sábia: O Brasileiro, na sua fé
particular, traz para si o conforto da mãe de Jesus, retirando-a do coletivo.
Assim, passamos a usar “Valei-me minha Nossa Senhora”!
Motivo de exposições nacionais, como, por
exemplo, “Um Homem Chamado Brasil”, nos salões do BID, Rio de Janeiro;
escolhido para titular colégios no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Norte,
pracinha, rua em Belo Horizonte, São Paulo e Natal, avenida, elevado em São
Paulo, faculdades, creches, memorial, museu, agências bancárias, lojas de
artesanato. Foi nome de Concurso Internacional em setenta e oito países, no
PARLATINO, dirigido pelo Deputado Federal Nei Lopes de Souza, seu aluno na
Faculdade de Direito da UFRN; Semana de Estudos pela sua obra na USP, SP;
Núcleo de Estudos na UFRN, tendo a frente o Prof. Humberto Hermenegildo e
equipe. Seus livros inspiraram peças teatrais brasileiras e espanholas,
programas radiofônicos, séries televisivas, documentários em Portugal, Espanha,
Brasil, México.
Por um sortilégio, está no meio de nós... Foi
eleito “santo”, “São Cascudo - Padroeiro da Tradição”, com reza e santinho, no
Simpósio Internacional dos Contadores de História, realizado no Rio de Janeiro,
em agosto de 2007. Vivo e presente esteve nos quatro mil componentes das alas
da Escola de Samba “Nenê de Vila Matilde”, em fevereiro de 2008, Grupo Um do carnaval
paulista. No carro Abre-Alas, conferi, emocionada, o enredo alusivo ao seu
trabalho ser cantado e dançado, com comentários generosos e gratificantes pelo
Júri da TV Globo.
Na cidade de Olímpia, Estado de São Paulo,
confesso que fui às lágrimas, na qualidade de Presidente de Honra do 44º
Festival de Folclore em sua homenagem. Na oportunidade, mais de dois mil
brincantes de todos os Estados Brasileiros faziam exatamente o que ele sempre
desejou: vestidos com roupas típicas entoavam as melodias das suas terras.
Iniciou-se em 2 de agosto de 2008 até o dia 8. Lá foi chancelado o Grande Colar
Cultural Câmara Cascudo, pela Prefeitura de Olímpia, Festival Nacional do
Folclore e Academia Brasileira de Arte, Cultura e História. Na capital, a
Global Editora organizou exposição dos seus livros por ela editados, e a
Academia Brasileira de Arte, Cultura e História – que tenho a honra de figurar
no Conselho e como Sócia Comendadora - promoveu uma noite com presenças
ilustres de todos os ramos do conhecimento do Estado de São Paulo. Inaugurado
seu retrato, pintado pela Acadêmica Gigi, fato noticiado pela mídia com
destaque, em 12 de agosto de 2008.
No dia 13, fui entrevistada na Televisão da
Faculdade de Teologia Umbandista, e falei para alunos de diversas classes daquela
entidade de estudos, respondendo sobre sua obra e importância na valorização da
Umbanda no Brasil.
Em Novembro de 2008, Luis da Câmara Cascudo foi
consagrado como um dos inspiradores do Primeiro Congresso de Umbanda do Século
XXI (o do século XX ele compareceu com Mário de Andrade) realizado na Faculdade
de Teologia Umbandista, em São Paulo. Fui honrada como uma das Professoras de
tão importante acontecimento.
Em 10 de dezembro de 2008 recebi a Medalha de
Mérito Câmara Cascudo, instituída pela unanimidade dos Deputados e referendada
pelo Presidente nos salões da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte.
Este ano, fui abençoada. A maior consagração como
escritora e biógrafa. O título do meu livro, “O COLECIONADOR DE CREPÚSCULOS”
(2004) narrando, com ótica filial e na qualidade de testemunha-confidente
passagens vividas pelo eterno mestre, foi utilizado para titular, no Teatro
SESI de São Paulo, Serviço Nacional da Indústria uma peça excepcional. O autor
e Diretor Teatral Vladimir Capella reuniu vinte e quatro atores, com
participação afetiva de Rolando Boldrin, que faz o Senhor Brasil, Câmara
Cascudo. O autor destacou que o Brasil está contido na riqueza literária do
homenageado, tributo justo à sua vida e obra.
Deixo de enumerar seus mais de cento e cinqüenta
livros, plaquetes, opúsculos, separatas e crônicas, descobertos constantemente
no Brasil, em Portugal, Espanha e França, para não me alongar em demasia.
Na síntese panorâmica da existência do meu pai, o
coração bate forte, apontando figura feminina que ele denominava, na
dedicatória dos seus livros, “animadora incomparável” ou “flor sem espinhos”.
Dáhlia Freire Cascudo, de tradicional família macaibense, filha caçula do Juiz
de Direito, depois Presidente do Tribunal de Justiça e Desembargador José
Teotônio Freire e da fidalga Maria Leopoldina Viana, conhecida por Sinhá,
virtuose no piano e apaixonada pela língua e civilização francesas. Luís a
conheceu com dezesseis anos, aluna das Irmãs Dorotéias, tímida e encabulada.
Criticado pela genitora, Donana Cascudo, por deixar de lado nomes famosos de
apaixonadas mulheres e se interessar apenas por uma menina, respondeu ofertando
à linda adolescente a boneca Elza, até hoje sob a guarda da nossa primogênita,
Daliana. Foram 57 anos de casamento, harmonioso e feliz. Pergunto-me se a obra
gigantesca de Luís da Câmara Cascudo, profunda e consistente, existiria em tal
dimensão, sem a permanente doçura da companheira. Na plaquete comemorativa ao
seu centenário, que será brevemente editada, na crônica intitulada “Planeta
Saudade”, como filha observadora, mas ainda calcada na prática da Promotoria de
Justiça e no exercício jornalístico, opinei. Escrevi que: “O segredo de Dáhlia
foi à definição da escolha. Ela possuiu a lucidez de peneirar o real, reservar
o importante, apagar o supérfluo. Fazia-se de desentendida quanto uma
escapadela boêmia, valorizando a harmonia familiar, a segurança do lar, a
simplicidade do cotidiano. O marido conservou ideário de liberdade, sem
amarras, buscas, averiguações. Regressava para o carinho leal e aparente
credulidade nos seus sonhos.”
Meu irmão, Fernando Luís, e eu, herdamos dos
nossos pais a sabedoria de manter harmonia conjugal, base para a riqueza
emocional que nossos filhos e netos ampliarão através dos seus descendentes. Na
nossa paisagem intima, realizamos a mais autêntica imortalidade. Tal sanidade
moral , de envelhecer amando, é o baú de tesouros que legamos. Que nossos
herdeiros o mantenham, através dos tempos...
Termino transcrevendo o Santinho que foi
distribuído no Rio de Janeiro, quando da sua eleição como São Cascudo - Patrono
da Tradição:
“Primeiro os preparativos: acenda o fumo, deixe a conversa tomar rumo. A
rede esticada, presa em duas palmeiras. O céu noturno cheio de estrelas. Agora,
a oração:Ajude-me, meu São Cascudo
Que tem coisas nesse mundo
Que só existem nas memórias
Do povo mágico das histórias.
Quero uma lição de geografia
Que um índio velho contaria
Para uma criança portuguesa
Se fartando com a sobremesa
De pé de moleque e brigadeiro
Junto com um peão de boiadeiro.
São Cascudo, me diga o que é
Que vem de noite num só pé,
E como me livro dessa assombração.
Meu Santo Padroeiro da Tradição.
Agora vou me deitar na rede,
Pois eu sei que o Santo entende,
Que amanhã é dia de festança
Vai ter música, aguardente e dança
Pro meu coração enamorado.
Valei-me meu São Cascudo!...”
FONTE – LUDOVICUS –
INSTITUTO CÃMARA CASCUDO – PRERSERVANDO A MEMÓRIA E DIGNIFICANDO A CULTURA
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